Primeira de MT a ser miss Brasil foi rejeitada por Cuiabá, acusada de fraude e teve faixa roubada
Quando Marcia Gabrielle fez 14 anos, já tinha os um metro e oitenta de altura que tem hoje – a idade atual, ela não revela. Foi nessa época que começou a sofrer bullying na escola, e prometeu para si mesma que provaria a todos os que colocaram apelidos nela que ela conseguiria alguma coisa com a altura que tinha. Em 1984, fez seu primeiro desfile para o estilista Dácio Correia, mas nem imaginava como isso mudaria sua vida. No ano seguinte, se tornou miss Mato Grosso, depois a primeira miss Brasil que representou o estado, e ficou no top 10 do miss Universo. Ainda hoje, a carioca que nasceu no complexo da Maré colhe os louros de seu grande feito.
Do desfile de Campo Grande para o posto de miss Brasil, Marcia precisou passar por um longo caminho. Veio fazer um comercial em Cuiabá, e, enquanto gravava em uma praça, foi convidada por representantes de uma associação chamada ‘AMEOP’ para representá-los no concurso de Miss Cuiabá. “Eu estava terminando um namoro no Rio, e naquela época pra você poder participar de um concurso de beleza, caso você ganhasse, você tinha que morar pelo menos seus meses no lugar”, lembra.
Ela aceitou o convite, mas no dia do concurso foi desclassificada. Na plateia estavam o prefeito de Barão de Melgaço, Francisco de Borja Santos, e a tabeliã Maria Izabel Barros Maciel, a Dona Naná. Os dois ficaram inconformados de os organizadores terem permitido que Márcia participasse e, depois, a desclassificado, e a nomearam miss Barão de Melgaço. “Eu já ia desistir, estava até namorando um cuiabano, e de repente da dona Naná disse que queria que eu fosse. Eu falei: quer saber, já não tenho nada mesmo. Zero é zero, vamos tentar mais uma vez”, lembra a miss. Para poder concorrer, ela ficou um ano morando em Mato Grosso, na casa de Ercília Maciel e Sérgio Raggi.
Dona Naná (Foto: Arquivo)
Após ser coroada miss Mato Grosso, ela foi para o miss Brasil. No dia 8 de junho de 1985, ao abrir a Folha de São Paulo, no entanto, teve uma surpresa: o título ‘Miss Brasil acusado de fraude’, e sua foto em quase meia página. A matéria dizia que o governo de Mato Grosso tinha comprado o concurso. “Eu falei, poxa, se eu tinha alguma chance, foi tudo por água abaixo. Pensei que não entraria nem entre as dez. E já estava bem desanimada mesmo. Disse: vou cumprir minha missão, vou honrar Barão de Melgaço e Mato Grosso, mas eu sei que não vai dar pra mim”.
A certeza da derrota veio quando, durante o concurso, viu um dos jurados – o júri naquele ano tinha nomes como João Dória e Pepita Rodrigues, e a apresentação era de Silvio Santos – lhe dar uma nota dois. “Na minha cabeça, por mais que todos os jurados me dessem dez, a minha contagem não passava de 60. Eu vi o cara me dar dois e falei, gente... não é pra ser minha essa coroa. Já estava conformada, já tinha me divertido muito também. E quando o Silvio foi lendo e me deixando por último, eu saquei que poderia ter alguma chance. Eu fazia a contagem pensando ‘mas todos os outros jurados não vão me dar dez’... tudo isso, você imagina, sendo televisionado! Até que quando o Silvio foi fazendo a contagem, ele deixou a [miss] São Paulo por último - que era onde estava sendo realizado o concurso - eu consegui fazer uma pontuação de 109 pontos e ganhei o título de Miss Brasil”.
Surpresa, Marcia chegou a seu momento de glória. Depois dessa coroa, ainda ganhou o título de Rainha Internacional do Café, na Colômbia, e ficou em segundo lugar no miss Sudamérica, no Peru, onde perdeu para a candidata da Venezuela. O miss Universo foi logo depois, em Miami, e ela ficou entre as dez mulheres mais bonitas do mundo.
“Lá no miss Universo eu perdi a rédea do negócio. Porque tem que ter um apoio psicológico, é muita pressão (...) e eu não tive. O cabelo foi meu, a maquiagem era minha, eu não sabia nem me maquiar! E tudo era eu. O meu vestido, [por exemplo] acho que eles não acreditavam que eu ia ganhar, e fizeram para o corpo de uma pessoa menor... o vestido ficou curto pra mim. Eu não sabia a importância do título, eu estava tão feliz, mas foi tanta pressão na cabeça, que eu não dimensionei. Se eu tivesse mantido a calma, e tivesse usado as roupas que eu usei no miss Brasil, talvez eu tivesse me dado melhor no miss universo”, lamenta.
Mesmo sem o título internacional, a carioca conseguiu ganhar o mundo, graças à sua coroa. “Eu conheci gente maravilhosa, eu aprendi muito, eu conheci outras culturas, eu dei a volta ao mundo, fui convidada do Japão... do Oiapoque ao Chuí, por conta dessa coroa que Deus me agraciou. [E] na hora que eu cheguei no Miss Universo que eu falei: Miss Barão de Melgaço, Mato Grosso, Brasil... eu estava representando uma nação”.
Apesar das viagens e das diversas portas que se abriram para ela, Marcia afirma que a vida de uma miss “é normal como todas as outras. Você tem que se cuidar pra não se deixar ficar achando que você é melhor que qualquer outra pessoa, porque não é. Você tem que ficar calçando a sandália da humildade, e percebendo que todo mundo vai pro mesmo buraco um dia”.
Desde o dia do concurso, ela trabalha marcando presença em eventos por todo o mundo. Foi em dois destes eventos que presenciou as cenas mais engraçadas – e bizarras – da sua vida. “Quando eu fiz 30 anos de concurso [2015] eu fui homenageada no Amazonas. (...) Quando cheguei lá, quem ia coroar a vencedora do Miss Amazonas era eu. A menina que concorreu comigo, a Greice, iria colocar a faixa, e eu a coroa na vencedora daquele ano. E na hora que eu fui coroar a menina, veio a segundo lugar revoltada e arrancou a coroa da minha mão. E ela pegou a coroa que era de ouro e espatifou no chão. (...) Mas antes disso acontecer, já tinha acontecido um episódio comigo parecido, que foi no Miss Gay, em Juiz de Fora [2009]. Fui entregar o prêmio para a que ganhou, Ava, e de repente, também, a que ficou em segundo lugar não gostou da coisa, e arrancou a peruca da Ava. Ela só ficou com os brincos”.
Outro fato curioso envolvendo Marcia tem a ver com sua faixa, que foi roubada em Miami. “Eu deixei a faixa em cima do banco, ao lado de um lanche, e fui comprar um relógio. Quando eu voltei o vidro estava quebrado, e não estava mais lá nem a faixa, nem o lanche”. Depois disso, ela ganhou uma nova faixa das concorrentes de 1985, mas esta também desapareceu misteriosamente.
Com tanta experiência, a miss Brasil 1985 está escrevendo um livro, sobre o que ela chama de ‘Complexo de Lady Di’, a vontade de grande parte das mulheres – e alguns homens – de ter este momento de princesa. “As mulheres mais famosas começaram tentando ser misses. Depois viraram artistas famosas, mas a grande maioria, da minha geração, era em cima disso, porque era uma coisa que te dava visibilidade pro mundo. Você ia pra outro país, representa uma nação, tinha com uma responsabilidade absurda. Eu rodei o mundo sem pagar uma passagem. Eu chamo isso de milagre, de dinheiro virtual que Deus me deu”, afirma.
Nesta quinta-feira (14), Marcia está em Cuiabá para participar do concurso de Miss Mato Grosso 2019, a convite de Warner Willon. Ele estava na plateia quando ela venceu em 1985, e assumiu o comando logo depois, ‘fazendo’ outras duas misses Brasil: Josiane Kruliskoski, em 2000, e Jakelyne Oliveira, em 2013.
Para as concorrentes, ela dá a dica do que uma miss deve ter: “Inteligência, bom caráter, simplicidade, e respeito ao próximo. A beleza não é o principal, até porque o que é bonito pra uns, pode não ser bonito pra outros”, finaliza.
Marcia (no meio) com as candidatas a Miss Mato Grosso 2019 (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)