"Cheguei a ficar doente": professores relatam sofrimento do trabalho na pandemia
“Eu fiquei em pânico , cheguei a ficar doente . Liguei para a escola pedindo para me mandarem embora, porque foi uma forçação de barra. Eles ligavam para a gente dizendo: ‘o seu aluno não está entrando na live porque você não está falando com ele’", relata a professora Elisangela*.
“O início foi um grande desafio. A minha insegurança me fazia pensar que eu não ia conseguir passar o conteúdo”, complementa.
No dia 22 de março deste ano, o governo do Estado de São Paulo emitiu o decreto nº 64.881, que insitiu a quarentena em todo o território paulista . A partir desse momento muitos profissionais tiveram que se adaptar e migrar as atividade para o ambiente online. A experiência do home office afetou em especial algumas classes, com a dos professores.
Na semana do dia dos professores, comemorado no próximo dia 15, o iG ouviu relatos emocionantes de profissionais dedicados e apaixonados pela missão de ensinar. E conheceu um pouco dos desafios e sofrimentos que veem enfrentando desde o início da pandemia.
Trabalho 24 horas
Elisangela, de 50 anos, atua há 24 anos como professora e diz ter experienciado um dos piores momentos da vida de magistratura. Ela dá aulas para o 3º ano do ensino fundamento do Colégio Absoluta, em Franco da Rocha, e viu os problemas de saúde agravarem com a nova rotina imposta pela pandemia.
“Não tenho mais o horário de trabalho e descanso. Não posso sair de casa e o trabalho todo aqui 24 horas. Isso causou um dano para a saúde”, conta. “Fiquei nervosa e desesperada. Os meus alunos são muito novos, estão saindo da alfabetização. Eu achava que eu não ia conseguir fazer uma boa aula”, complementa.
O colégio particular onde Elisangela dá aula passou a cobrar, logo no início da quarentena, uma rotina metódica de gravação vídeos e atendimento aos pais e alunos, que gerou sobrecarga no corpo docente. Além disso, os professores tiveram que arcar com todos os custos do material necessário para entregar as vídeo aulas no tempo e no formato exigidos.
“Eu tive que adaptar a minha sala para virar uma sala de aula . Eu tive que comprar lousa, canetas e a escola não forneceu nada. Minha casa virou um set de filmagem. Ofereceram apenas o colégio para gravar as aulas, mas de resto nós tivemos que correr atrás. Eu não posso deixar o meu aluno. Ele não tem culpa disso”, comenta.
Quem nunca tinha ficado em frente às câmeras começou a ter que entregar vídeos perfeitos para a coordenação do colégio, que exigia um padrão de qualidade elevado.
“Você tem que ficar engessada naquela tela, porque não é só o aluno que está te escutando Tem uma família toda te observando", explica. Elisângela teve que recorrer aos filhos para editar os materiais das aulas e disponibilizar os conteúdos na plataforma do colégio, pois tinha dificuldade com a plataforma.
Como tempo o colégio migrou para a modalidade ao vivo e a rotina de Elisângela se estabilizou em meio à pandemia . Mas se na rede particular os professores sofrem com a cobrança excessiva em um período de adapatação, na rede pública os educadores precisam enfrentar a dureza de ver a olhos nus a evasão escolar .
Arquivo pessoal - Elaine: da sala cheia a apenas dois alunos online
Dois alunos em sala de 30
“Eu tento fazer semanalmente aulas onlines e na maioria das vezes tenho apenas 2 alunos que conseguem acompanhar em uma sala com capacidade para 30 estudantes ”, conta Elaine Correia de Olveira, de 33 anos, professora de português fundamental 2 e médio da rede pública municipal de São Paulo.
Elaine é professora de uma escola municipal em Sapopemba, na zona leste de São Paulo, uma das regiões mais afetadas e com mais mortes pela Covid-19 na capital paulista. Ela conta que os seus alunos enfrentaram muitas dificuldades para se adaptar ao ambiente online.
“Eu trabalho em uma escola da periferia , que teve um dos maiores indíces de contaminação por coronavírus na zona leste. Manter o contato ficou muito dificil, porque eu sei que o estudante não vai conseguir acessar a plataforma por diversos motivos, seja porque está auxiliando a família em trabalhos domésticos, ou porque não tem equipamentos . É o maior desafio”, revela.
“A adaptação ainda está acontecendo. Ela não estabilizou, principalmente devido ao contexto social . Eu trabalho em uma escola da periferia, aqui a situação é bem complicada, mas a gente conversa em rede e outros colegas de outras regiões relatam a mesma situação”, explica.
A professora conta que enfrenta muitas dificuldades para manter a relação humanizada de acompanhamento do desenvolvimento dos alunos que tinha anteriormente. A rede pública municipal desenvolveu uma parceira com o Google para que os alunos publiquem conteúdos em uma plataforma e realizem atividades em uma apostila retirada na escola. As aulas online não são obrigatórias, seja na modalidades ao vivo ou gravada.
“Eu acredito que a educação precisa ser mantida através de um diálogo permanente entre os estudante e os professores. Com a aula remota isso é muito difícil de acontecer. A maioria dos estudantes não têm acesso às aulas e os que têm não estão acostumados com a ferramenta. Eles e nós temos muitas dificuldade porque não foi feito nenhum preparo. Temos muitas lacunas”, explica.
"O professor não é um depósito de conhecimento feito para despejar informações na outra pessoa. Estamos com uma sobrecarga para passar conteúdos. A questão do humanizar fica de lado e não tem condições de dar conta da educação básica de forma remota, porque os alunos estão em fase de transformação. O desafio é dar conta”, destaca.
Dores de cabeça e de coluna
A mesma experiência acontece na Escola estadual Rituko Mitani, em Franco da Rocha, onde trabalha a professora de português do 9º e 1º ano do ensino médio, Simone Luz, que destaca como o processo de adaptação foi doloroso , tanto para os alunos quanto para os professores.
“O início foi bem difícil. Muitos dos nossos alunos não têm acesso aos recursos necessários para acompanhar as aulas. Eu também tive que me adaptar, precisei trocar a minha internet, comprar um notebook e transformar a minha sala em uma sala de aula. O começo foi muito angustiante , porque eu não tenho muita habilidade com essas coisas mais novas [tecnologias]. De uma hora pra outra precisamos aprender a editar vídeo. Filhos e vizinhos tiveram que ajudar", diz.
Assim como a professora Elisangela, a Simone enfrentou problemas de saúde por conta das novas condições impostas pela pandemia. A sobrecarga e o estresse fez com que ela pedisse demissão do colégio particular onde dava aulas.
Além disso, ela teve que recorrer ao hospital diversas vezes, correndo o risco de se infectar por Covid-19, para tomar injeções devido aos problemas de coluna agravados pela falta de ergonomia em casa. As enxaquecas também se tornaram frequentes.
Simone precisou conciliar todos os problemas pessoais com o dos alunos, que se sentiram perdidos no começo da pandemia quando a escola ainda utilizava um blog para realizar as atividades.
“O começo foi péssimo . Eu não sabia como gravar, então o som ficava ruim. Tive que aprender qual o aplicativo ideal para editar o material. Eu já cheguei a chorar esse processo. De uma hora para a outra tivemos que aprender um monte de coisa sozinhos. Eu tive que pedir auxílio para uma aluna da escola que mora na minha rua. Ela veio de máscara me ajudar em casa”, conta.
Com diversos professores relatando problemas de saúde nesse período, a coordenação da escola convocou uma psicológa para auxiliar os docentes. Simone conta que, diferente da maioria das escolas, a diretoria de onde trabalha tem prestado todo o suporte necessário nesse período.
Relação com os alunos
A experiência com o alunado é diferente nas diferentes escolas e redes de ensino. A professora de colégio particular, Elisangela, destaca como a experiência online tem sido importante para identificar as dificuldades dos alunos e avalia que a relação se tornou mais próxima , apesar do ambiente online.
“A gente criou muito mais laço, porque eu entro na casa deles todos os dias . A gente criou um laço afetivo mesmo estando distante. Eles me monstram o que estão comendo, os bichinhos deles, pedem para eu mostrar a minha cachorra”, explica.
Já Elaine é firme ao dizer que o " acompanhamento dos alunos não acontece " e se frustra ao observar apennas dois alunos frequentes nos encontros ao vivo, quando consegue realizar atividades mais humanizadas e questioná-los sobre a vida pessoal para além das questões pedagógicas.
A mesma experiência é narrada por Simone, que diz que "acompanhar os alunos tem sido uma dificuldade” e revela que a escola tem desenvolvido ações para convocar os alunos dispersos de volta para o ambiente escolar.
Pontos positivos
Apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas nos 7 meses de confinamento e mudança de rotina, por conta da pandemia do novo coronavírus (Sars-cov-2), os professores ainda conseguem enxergar pontos positivos na atividade de lecionar à distância.
“São as pequenas coisas que engrandecem e deixam a gente feliz. Mesmo distante ainda fazemos parte da vida deles ”, diz Elisangela.
Eliane faz um contraponto e aponta a cooperação entre os professores como o grande ganho do período: “O único ponto positivo disso tudo foi a interação entre os professores. A classe de trabalhadores dos professores é essencial para a sociedade e um tenta ajudar o outro nas diversas questões da vida. Houve um momento de solidariedade”.
Já Simone destaca a nova relação com a tecnologia e a valorização do ensino em sala de aula como os principais pontos positivos. “Apesar da gente ter sofrido no início foi um aprendizado, nossas aulas vão ficar melhores por causa da tecnologia, que foi um grande ganho. Mas nós descobrimos que a sala de aula nunca vai se perder, porque o aluno precisa do professor ali do lado dele", enfatiza.
*Nome alterado a pedido da fonte para preservar a identidade
Fonte: IG