Entenda por que estudo sobre consumo de carne vermelha está causando polêmica
Um estudo publicado na última terça-feira (1º) no periódico científico Annals of Internal Medicine está causando muita polêmica — e confusão — entre profissionais da área da saúde. Na pesquisa, um grupo de cientistas afirma que, ao contrário do que indica a maior parte das recomendações nutricionais atualmente, comer carne vermelha ou processada em excesso não faz mal. O grupo vai além e estabelece novas diretrizes para esse hábito.
Após revisar 12 estudos que envolveram mais de 54 mil pessoas, os pesquisadores concluíram que não existem associações estatísticas significativas entre o consumo desses alimentos e o desenvolvimento de doenças cardíacas, diabetes ou câncer. "Este não é apenas mais um estudo, mas uma série de revisões sistemáticas de alta qualidade, resultando em recomendações que julgamos muito mais transparentes, robustas e confiáveis", disse Bradley Johnston, um dos autores do artigo, em comunicado.
Para chegar a essas conclusões, o grupo utilizou um método de revisão de estudos científicos conhecido como GRADE (Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation). Esse método dá maior peso a um tipo de pesquisa conhecido como ensaio clínico randomizado (ECR) e tira pontos quando os trabalhos são os chamados "observacionais".
Esses dois mecanismos de pesquisa são diferentes, e é essencial compreendê-los para entender por que a nova pesquisa está causando tanta polêmica. Vamos pegar como exemplo um estudo que avalia a eficácia de um medicamento.
Em ensaios randomizados, sem que os voluntários saibam, eles são dividios em dois grupos. Enquanto alguns recebem a droga pesquisada, os outros consomem apenas um placebo. Após um determinado tempo, os participantes são avaliados novamente para que sua evolução seja observada.
Se os pacientes que receberam o medicamento tiverem uma mudança considerável em seu quadro em relação aos que tomaram o placebo, os pesquisadores podem concluir com segurança que a droga funciona.
Nos estudos observacionais a história é diferente. Neles, os participantes não são divididos e nem passam por nenhuma situação específica – são avaliados de acordo com seus hábitos. Geralmente, os voluntários passam por algumas análises iniciais para que os pesquisadores conheçam seus hábitos e são acompanhados por um determinado período.
Os resultados obtidos após o fim desse período são usados para obter conclusões. O método se chama observacional porque, como o próprio nome indica, ele apenas observa, com base em alguns parâmetros – não há interferência nos hábitos dos participantes. Esse é o caso da maior parte das pesquisas em nutrição – e há um motivo para isso.
Dilemas éticos
Quando assunto é dieta, pesquisas observacionais são preferíveis porque não induzem os voluntários a práticas específicas, apenas registram seus hábitos e propõem comparações. A falha dessa metodologia está em, muitas vezes, não considerar hábitos e fatores que podem interferir nos resultados. Por exemplo: ao analisar o consumo de carne na saúde cardiovascular, os pesquisadores podem não conseguir medir o peso de hábitos como tabagismo, poluição e sedentarismo na vida da pessoa.
E esse é o grande argumento de Johnston e sua equipe para questionar as diretrizes atuais sobre o consumo de carne, já que a maior parte dos estudos seguem esse método. Segundo o cientista, o intuito do grupo não foi colocar em xeque toda a ciência nutricional, afinal "pode haver um benefício [na] redução da ingestão de carne vermelha ou processada, e as pessoas devem saber disso". Por outro lado, "pode não haver nenhum benefício, nós não sabemos", afirmou.
Polêmica
Nomes de peso da comunidade científica se organizaram para rebater o estudo de Johnston. É o caso do cientista especialista em nutrição Frank Hu, da Universidade Harvard. Em entrevista à rádio norte-americana NPR, Hu disse que o problema com a aplicação do método GRADE para a avaliações como essa é que ele foi desenvolvido principalmente para testar pesquisas relacionadas a drogas. "É realmente problemático e inapropriado usar o GRADE para avaliar estudos nutricionais".
Hu e seus colegas inclusive publicaram uma nota de repúdio à publicação do estudo o Annals of Internal Medicine, um periódico científico renomado. "As novas diretrizes não se justificam, pois contradizem as evidências geradas a partir de suas próprias metanálises", escreveram os cientistas de Harvard.
Em depoimento ao The Washington Post, Elizabeth Klodas, cardiologista e membro do grupo de nutrição do American College of Cardiology, afirma que a pesquisa contribui para aumentar as dúvidas dos pacientes, o que pode ser muito arriscado. Ela ressaltou que “as conclusões não são as da comunidade médica. [Esses pesquisadores] foram seletivos nos estudos incluídos e o peso que lhes deram”.
Meio ambiente
Ao afirmar que não há por que reduzir o consumo de carne, Johnstona e seu time não levaram em conta questões relacionadas ao meio ambiente ou ao bem-estar animal – muito discutidas atualmente.
Cada vez mais estudos alertam para o fato de que a pecuária contribui para o aquecimento global, já que o gado bovino é responsável por grandes emissões de gás metano, além de ser um dos principais fatores por trás do desmatamento. O impacto climático da produção de bovinos, aliás, é cinco vezes maior do que o de frango ou porco.
Tendo isso em vista, a própria equipe responsável pelo artigo declarou que são "solidários ao bem-estar animal e às preocupações ambientais". Segundo eles, vários membros da pesquisa "eliminaram ou reduziram sua ingestão de carne vermelha e processada por esses motivos".
Moderação
Embora o estudo possa ter animado os fãs de churrasco, especialistas do mundo todo insistem que é necessário controlar o consumo de carne vermelha e/ou processada. Giota Mitrou, diretor de pesquisa da World Cancer Research Fund, ressaltou ao The Guardian que exagerar no consumo desses alimentos pode, sim, ser arriscado.
“A mensagem que as pessoas precisam ouvir é que não devemos comer mais do que três porções de carne vermelha por semana e evitar carne processada por completo", afirmou o especialista ao jornal britânico. Inclusive, essa é a quantidade indicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Passado problemático
Não é a primeira vez que uma pesquisa realizada por Johnston – publicada no Annals of Internal Medicine – causa controvérsias. Em 2016, junto a outros pesquisadores, o cientista divulgou uma revisão que questiona a qualidade das análises referentes ao consumo de açúcar.
O trabalho causou polêmica porque, como reportou a NPR à época, o estudo foi financiado pelo International Life Sciences Institute (Ilsi), entidade sem fins lucrativos ligada a grandes empresas do setor de alimentação. Em resposta, um executivo do Ilsi alegou à NPR que o trabalho não tinha como objetivo ser uma tentativa da indústria de diminuir a ciência. "O intuito do artigo era investigar especificamente a qualidade dos métodos e das evidências", afirmou Eric Hentges.